Tuesday, October 30, 2018

Lázaro

Quem ultrapassa
o limite da garganta?
Palavras antigas
esquecidas no porão
Quem vem lá
num passo de desejos calados?
É a Vontade,
carregando as Palavras
Quem está aí
batendo na minha porta?
É a loba furiosa do Presente
montada na Vontade
trazendo Palavras nas mãos

Thursday, March 10, 2011

Tudo o que pulsa em você
é o inconcreto
É o desejo de eternidade
descansado de tantos anos
alojado num quarto secreto,
que finalmente descamba e sai,
faminto por luz,
rasgando-te as carnes e te fazendo
sentir-se viva.

O que te faz sentir é o momento
e eis a dificuldade, 
pois todo o transitório
todo o andar em cordas
sem precisa música
assim catando os lados
é o que te dá gosto
e o que te amarga
língua áspera no meio da noite,
sensação de enjoo,
coração disparado no peito

Teu desejo é doce leito e pedra
que o verso tenta, tanto, alcançar
mas falta tinta

Teu desejo é universo pênsil
intrincado laço de circunstâncias
não dimensionáveis porque humanas
que nas mãos não se pode conter.

Na sua matemática, que inclui o tempo,
o homem e seu tempo,
a vida e as outras pessoas
e seus tempos
há uma fonte infinita de incertezas
e nada é secreto, tudo visível e assustador
expostas em toda sua potência de erros

mas a esperança, ah a esperança...

É de uma coragem de navegadores a que precisas
para deixar esse porto seguro do eu sozinho
e se lançar ao desconhecido mar,
e de mar a mar, de mar a mar a mar a mar

Sunday, March 29, 2009

Lobo do homem

Então vamos aos pormenores - falou e tomou uma imensa pausa antes de dizer- O homem é sempre lobo do homem.
- Mas isso não é pormenor, é generalismo!
- Não nesse caso, meu bem, não nesse caso.

Aconteceu assim: dois dias depois do contrato assinado veio ter comigo o tal Manuel Osório. Sujeitinho de bom trato, homem franzino de uns óculos frágeis no rosto e aparência amigável. Tipo do sujeito que não oferece perigo. Foi ter comigo para dizer que estava muito feliz em se juntar à firma, que vinha de longe seu desejo de entrar para os negócios de seguro - tinha uma certa pompa no falar o tal sujeito - e que queria contribuir de toda forma possível para o progresso da empresa. Percebi de cara que era um sujeito bom de se trabalhar, sem perguntas demasiadas, sem indiscrições, um cara em quem eu podia pensar quando precisasse. Esses homens que a gente conta como invisíveis, mas que fazem a máquina mover.

Na primeira chance que lhe dei o tal se saiu bem. Era um caso intrincado de disputa, cheio de farpas, documentação esculhambada, caixas e caixas de papéis desdizendo outros papéis e afirmando terceiros: o usual. Um espeto, como diria o saudoso superintendente Jonas.
Pois não é que o sujeitinho deu conta? Amarrou-se aos códigos como um náufrago ao mastro do navio e com uma paciência de Jó foi desatando nó atrás de nó, sem descuidar da viúva, uma senhorinha daquelas impertinentes que sabe atasanar a paciência do cristão até ele virar ateu. A velha tomou-se de amores pelo Manuel! Não fosse a idade e a cara eu era capaz de jurar que os métodos de persuasão do sujeito tinham incluído uns passeios suspeitos com a velha. Mas nada, tudo ali, no gogó, e o cara desenrolou o enrosco. Foi digno de nota, dos outros sujeitos ficarem até meio invejosos e começarem a falar que eu estava protegendo o Manuel. Pois eu te digo, protejo sim quem sabe trabalhar, mais ainda quem enfrenta o dragão - e a velha era um dragão! - e não reclama.

Segundo trabalho, mesma coisa. O cara era bom. Já estava me perguntando onde achar mais desses sujeitos. Uma firma deles e eu me aposentava uns 5 anos mais cedo, com direito a casa na praia. Trabalhava sem reclamar, cumpria com o que dizia, aumentava a clientela - a velha não chamou para um chá e do chá ele não veio com mais duas clientes? Era um papa-velhinha o sujeito! Nenhuma passava impune! Devia ser a cara de coroinha, sei lá eu, eu sei que os negócios cresciam e eu vi que o sujeito era mesmo bom. Bom de verdade.

Daí veio aquele caso que te falei. O da mulher do coronel? Olha, não vá ficar ofendida com isso, mas a mulher era um...
- Você já disse.
- Disse? Mas era. E era mais. Todo mundo querendo atender, um frege no escritório. Mas ela era amiga da velha-dragão e foi direto na mesa do Manuel. Se a mulher fosse de cera aquele dia ela tinha derretido de tanto que os sujeitos olhavam para as pernas dela. Eram um...
- Sim, mas e daí?
- Daí que o Manuel começou suas atividades de sempre. Se enfurnou com os papéis, catou todos os códigos, grifou todos os pormenores, gastou tempo mesmo. Nada diferente das velhas, ali, firme, jogando duro. Admirei o rapaz. É admirável quem é capaz de se dedicar assim com uma distração daquelas no caminho.

Mas eu estava dizendo... sim, trabalha o sujeito como um mouro, levanta toda a informação e leva o caso adiante. O assunto até nem era simples, mas também nem tão complicado assim. E...
- E...?
- Nada. Dá com os burros n'água. Um azar. Acontece. O documento que ele precisava para fechar as negociações só tinha como sair dois dias depois do prazo. Ele apelou mas nisso a burocracia também não faz diferença entre ninguém - isto é, entre ninguém que não tenha um peixe grande para acudir - e nada do caso da moça, digo, da viuvinha lá se resolver. Tentou acudir de todas as formas, se pendurou no telefone, mas sem favores a colher tem hora que não dá mesmo. Finalmente veio a mim pedir conselho.

- O caso é, seu Sampaio - ele me disse - o caso é que eu não tenho mais o que fazer. Emperrou. Não tenho mais o que fazer.
- Já explicou para a moça a situção?
- Sim, mas isso não ajuda. Ela depende da solução para tocar a vida, está sem meios de manter a casa enquanto não resolvermos essa pendenga. É de dar pena.
- O caso é assim grave então?
- É, é grave. Eu já andei lhe emprestando o que pude de umas economias, mas nada de se resolver e estou vendo que nem tão cedo.
- É, decurso de prazo é um problema incontornável... pelos meios legais.
Te juro que quando falei isso o sujeito ruborizou, meu bem, ruborizou! Mas veio a pergunta

- ... e quais os outros meios?
Falei então dos meus conhecimentos no meio, de como tinha crescido graças ao Jonas na vida e como devia a ele tudo o que sou. Que nesses meios tudo é uma questão de gratidão, que sendo grato aos que te estendem a mão teu caminho é só pra cima. Falei que tinha uns conhecidos que podiam ajudar, ainda mais...

- ... ainda mais?
- Olha, não quero ser grosseiro, mas a tua viúva é um pedaço de mau caminho e isso ajuda a amaciar os caras.
- Mas...
- Não , não , nada disso. É que os caras são vaidosos, e saber que prestam favor a uma mulher... com o perdão da palavra, mas ... sejamos sinceros, a uma mulher gostosa daquelas enche os homens de boa vontade.
- Mas eu não posso expô-la assim.
- Não, não , não. Não me interprete mal. Basta levá-la contigo nas negociações. Deixe que eles vejam. Ela também não me parece ser uma mulher sem consciência dos dotes, não teria casado com um coronel assim.

O sujeito ficou quieto. Estudou, pensou, e uns quatro dias depois me procurou.

- Conversei com a cliente e ela concorda com a nova abordagem.
- Que nova abord... ah, entendi.

E deu-se como expliquei a ele, uns favores aqui, leva a moça para passear, deixa os homens babando, acena levemente com a promessa de gratidão de uma viúva daquelas e pronto, negócios encaminhados. Mas...

- ...mas?
- Azar de novo. Outro entrave na documentação. Não fosse quem era eu ia jurar que era descuido, mas o Manuel era bom com essas coisas de papelada. Ele parecia entender a cabeça do papel, entrar mesmo na coisa e descobrir uma lógica no meio de toda aquela baderna. Acontece, azar.

A esta altura eu mesmo já tinha me chegado para conversar com a moça. Não me olhe assim, só conversa! Enfim, papo vai, papo vem e ela toda cheia de pudores, mas eu sabia que ela estava precisada de um dinheiro. Passei um cheque, ela toda preocupada
-Mas os senhores já fizeram tanto por mim...
- Deixe de bobagem , moça. Não tem por que ficar passando aperto com o que tem a receber. Considere isso um adiantamento que nós daqui incluímos nas despesas da firma. E ela, muito relutante, aceitou o dinheiro.

- Sei...
- Olha, até você ia gostar se conhecesse a moça.
- Duvido!
- Ia sim, ia. Era dócil, educada, muito gentil. O oposto da velha-dragão, que parece que era vizinha dela ou algo assim.

Pois aí entramos nesse círculo de burocracias. Parecia que tinham rogado praga, era um empecilho atrás do outro, e a moça já estava que não podia mais. E nós investindo nela... no bom sentido, ajudando a pobre. Chegou até a se oferecer para trabalhar no escritório para compensar as despesas, mas era já tanto que eu achei por bem deixar as coisas separadas. Quando o dinheiro do coronel finalmente saísse seria o suficiente para cobrir e ainda nos dar algum lucro. E suas visitas semanais eram agradáveis. Era bom para os ares daquele escritório cheio de papéis ver a moça cruzar os corredores, os outros sujeitos da firma se animavam. Eu me considerava um promotor do bem estar psicológico dos meus funcionários, fazia bem à moral deles.

O Manuel coitado, pegava uns outros casinhos mas sua maior dedicação era mesmo à viúva. Eu já tinha visto sujeito desmontar por conta de fracasso, mas esse não aceitava a possibilidade. Ele lutava pelos papéis como quem luta pela vida. A esta altura ele já tinha apelado para todos os meus contatos e a viuvinha era motivo de louvor em nossa lista de clientes. Os homens, quando eu ia ter com eles, sempre se interessavam pelo andamento da coisa. Mais pelo da viúva, verdade, mas a lembrança era boa para o caso, então que fosse.

Um dia veio a notícia: saiu o parecer. O Manuel correu para ver qual o resultado. Nunca vi tão animado. Nisso vem chegando a viúva. Ela passa e eu pensando, deve ter saído, essa é a última vez que ela cruza esses corredores. A viúva se senta na sala e pergunta do caso. Eu...

- Você...?
- Eu desconversei em princípio. Queria aproveitar aquela última vez que a via - eu estava certo disso - e comecei a falar de tudo que se passou naqueles meses de convivência. Ela começou a se mostrar preocupada e disse que sabia o quanto devia a mim e ao Manuel, que não sabia o que seria dela sem a nossa ajuda.
- Pobrezinha...
- ... que tinha tudo anotado num caderninho na bolsa e que pagaria tudo, tudo o que nos devia. Foi ai que eu fiz a besteira. Disse que ela não precisava dever nada, que eu podia esquecer tudo se ela me fizesse uns favorzinhos. Não fique assim, meu bem, eu era um homem mais impulsivo naquela época, hoje só tenho olhos para você...
- ...
- Ela recusou... em princípio. Foi ficando vermelha e aquilo me deixava ainda mais falante, eu dizendo que a admirava, que achava que ela tinha uma postura admirável diante de toda a bagunça que estava sua vida, que ninguém a recriminaria por nada daquilo. E ela calada. Eu estava a ponto de mandar a sujeitada de fora toda para casa e pegar aquela viuva ali mesmo, mas sou um cavalheiro e nunca avançaria sem o consentimento dela. Pois tanto falei, tanto falei que ela disse... está bem. Olha, eu queria soltar fogos de artifício.
- Poupe-me de detalhes...
- Então está bem. Está bem, está bem, perdoei as dívidas e durante mais uns meses acertei com ela tudo o que nos devia. O Manuel ainda atrás do bendito parecer que não saía e eu com a viúva. Comecei a emprestar mais, dava presentes que ela tinha a discrição de usar só quando nos víamos. Comecei a tirar dinheiro do caixa para bancar a viúva. Como a contabilidade era minha não era difícil mascarar tudo no meio dos dados da firma.

Nisso, claro, continuamos trabalhando lá em outros casos. A firma estava um azougue, tinha cliente saindo pelo ladrão. E eu a mimar a viúva. O Manuel começou a pegar outros casos e voltou a ganhar, coisa que acho que fez bem a ele. A viúva agora ia menos ao escritório, mas recebia seu soldo... e as minhas visitas.

No fim daquele ano a empresa programou um grande jantar. Era para celebrar os ganhos e agradar aos que nos ajudaram naquele tempo. Iam estar lá todos os sócios, os amigos dos sócios e os que mandavam. Então era tudo festa. Depois da festa para a geral um grupo nosso menor ia para um piano bar para o nosso "balancete anual". Era o momento dos sócios seniors falarem bobagem, contarem vantagem, enfim, papo de homem. Um dos sócios me pediu para chamar o Manuel para a roda. Ele me disse da intenção de fazê-lo sócio da firma e eu fiquei, te confesso, ainda mais feliz. Afinal eu contratara o sujeito, tinha ensinado os caminhos para subir e sabia que isso podia me tornar mais forte diante dos outros. Meu ego estava nas nuvens.

No bar pedimos umas garrafas de blue label, gelo e uns charutos. Fazia parte do ritual. Começávamos com uma dose e daí abríamos a carta de bebidas para ver o que tinha. Tudo ali era para ser regado ao que havia de bom e de melhor. O maitre já sabia e se adiantava arrumando tudo, copo de cristal, prataria, coisa que eles não tiravam do canto para ninguém, exceto para o nosso seleto grupo. Parte dos lucros do ano eram gastos naquela noite com gosto.

Sentamos todos, éramos uns 8 aquela noite, mais o Manuel. Este até parecia outro homem se comparado com aquele sujeito franzino que entrara na minha sala um dia. Parecia ter ganhado peso, talvez fosse o corte do terno. O óculos era mais moderno, o cabelo mais ajeitado, não sei, o sujeito estava virando gente. E sabia falar o desgraçado! Os outros sócios riam de dar gosto com as piadas dele, era bem articulado, ainda que um pouco posudo demais para o meu gosto, mas agradava. E ficamos lá, falando de ganhos no mercado de ações, investimentos, rendimentos, dividendos. Era uma grande competição de quem podia mais, quem era o maior... é, o maior comedor da paróquia. E eu quieto, não podia entregar a viúva, isso era arriscar demais. Mas os comentários chegaram ao assunto. E os sócios, todos querendo saber da viúva, se dirigiram ao Manuel. Achei que o sujeito ia ficar vermelho, desconversar, como já tinha visto algumas vezes... nada! Falou, disse que era isso e aquilo, que era com prazer que ele se dedicava ao caso, que era um prazer ter audiências com ela, que era um prazer... e aquilo me deixou confuso. Então o Manuel também visitava a viúva? Era isso? Não precisei perguntar...

- ...mas eu só conheço a estampa. Quem entende mesmo da viúva é o Sampaio.

Eu não sabia onde me enfiar... foi uma disparada de perguntas, todos querendo saber detalhes, todos ávidos por um pedacinho da moça. E a vaidade e a bebida me fizeram cuspir tudo, eu me sentido o maioral, comendo a mulher admirada por todos, não segurei a língua. Fui um idiota. O Manuel escutou tudo aquilo muito contente, achei que fosse uma retribuição, que ele estivesse ali abrindo espaço para meu ego passear, e se fosse isso se mostrava de novo um sujeito bom, o pavão gosta de se exibir de vez em quando. E eu pensando, mas eu ensinei muito bem a esse rapaz, ensinei bem, ensinei...

- Mas peraí, Sampaio, e a contabilidade da viúva, como anda?

Eu fiquei mudo. Foi aí que me bateu: esse cara vai me ferrar. E começou a falar do que eu tinha feito. Catou de dentro de uma pastinha fétida que eu nem tinha visto com ele uma cópia do livro caixa e saiu mostrando para os sócios. Eu tentei protestar, dizer que aquele não era momento para isso, mas nada. O tempo fechou, os sócios todos emudeceram. O infeliz rastreou cada presente, cada retirada, cada coisinha que fiz para a viúva. Era despeito, devia ser. Não teve colhões para comer a viuvinha e agora estava se vingando em mim! Como eu fui estúpido!

No fim, os sócios me pediram para sair da sala. Eu, expulso do meio dos meus pares por aquele borra botas! Por aquele sujeitinho medíocre que não era capaz de erguer os olhos quando eu conheci! Agora era outro, me olhava confiante, desafiando mesmo. Será que eu me enganei tanto assim? Esse sujeito não foi o que eu contratei. Eu, que já tinha bebido muitas, resolvi ficar na porta e esperar para tirar satisfações. Quem ele pensava que era? Eu que o acolhi, que fiz ele crescer! Quem ele pensava que era?

Me escondi dos sócios e vi ele saindo sozinho com a sua pastinha debaixo do braço.
- Queria mesmo falar com você. Não procure mais a Beth. Ela me pediu para te dizer isso.

E saiu. Ah, mas eu queria, eu queria...

- ...ter menos idade para partir pracima dele. Mas não tinha. Não tem.
- É, meu bem, acho que você tem razão. Eu fui um covarde. Nem um surra no sujeito consegui dar. Fui pra casa, da casa para o escritório. Nem me deixaram entrar. Uma caixinha vagabunda de papelão com a secretária, meia dúzia de tralhas, tudo o que me deixaram levar. Eu protestei, mas chamaram os seguranças. De novo, um covarde. Procurei a Beth, a minha viúva. Ela tinha se mudado. Trocou telefone, tudo. Passei no prédio e o porteiro me disse que o caminhão de mudança tinha saído de manhã cedinho.

De caso pensado. Aí veio o último golpe: caso pensado, e eu caí feito um pato! Eu, um pato! A viúva nem devia ser viúva. Fui ver e tinham pedido - ele tinha pedido - o arquivamento do caso na semana anterior. Tudo de caso pensado...

- ... você está bem?
- Estou, estou... não, mas vou ficar.
- Se quiser nós podemos tentar...
- Não. Agora não.
- Então tenta dormir. Esquece isso.
- Um dia. Um dia eu esqueço.

Wednesday, July 04, 2007

Creolina

O cheiro de limpeza dos banheiros entra pelas narinas e gruda. Todo fim de treino é assim. Joana não faz questão de pressa, toma seu tempo e prolonga os tiros finais de 500 metros. A piscina do clube não é aquecida e a maioria, ao contrário de Joana, corre para terminar o exercício o mais rápido possível, nesse final de maio anunciando inverno. Mas ela não.

Para Joana, a piscina é o seu momento de reflexão. Não que tivesse uma noção exata do que era reflexão da altura dos seus 15 anos, era algo mais intuitivo do que propriamente planejado. Sabe apenas que durante as braçadas ela se sente leve, fora do mundo, numa paisagem infinita de sons abafados e azulejos. A interrupção das viradas não interrompe; são como o tiquetaquear de um relógio, marcando intervalos regulares que prolongam o tempo infinitamente.

O Carlinhos, sabendo desses costumes da aluna, dava sempre uma última chamada. “Faltam cinco” querendo dizer cinco piscinas para completar o último tiro, ou “faltam 2 inteiros” quando ela deixava o ritmo mais solto, ou ele dispensava a equipe antes. Mil metros pela frente, 20 vezes a piscina, vinte toques na borda. Tinha a impressão que tudo poderia estar diferente quando terminassem os mil metros.

E poderia mesmo estar diferente. Ela poderia sair da piscina e ver no visor do celular uma ligação perdida. Dele. Sabia que era difícil acontecer, que ele sabia dos horários de treino e não ligaria quando soubesse que ela não pode atender. Mesmo assim ela fantasiava uma ligação perdida. Uma mensagem de voz.

“Oi Jô. É que deu saudade. Sei que você está aí no clube. Me liga quando der, ok? Beijo.”

Oi Jô. Beijo. Não era ele. O Rico nunca na vida deixaria um recado assim. Deve estar pendurado na internet, nem lembra dela. Nem chance.

Ou poderia ser outra a ligação. Do seu pai. Esse também sabia dos horários, mas nunca lembrava, ainda mais agora. “Oi filha, tô ligando para saber como você está. Aqui em Londres tá um dia maravilhoso, queria que você estivesse aqui. A Sônia tá te mandando um beijo. Saudade.” Esse ela não sabia se queria ouvir. Com certeza era a Sônia instigando o pai a ligar, do lado dele, aprovando as palavras com um sorrisinho. A quem ela quer enganar? O pai se separou por causa dela e agora mora do outro lado do Atlântico.

“É uma oportunidade imperdível, filha. Eu preciso mesmo ir.”

Precisa ir para longe porque não ia agüentar aqui com a mãe olhando para o casalzinho. E me deixam com a bomba na mão.

Onze. Faltam dez para terminar.

Ela queria o pai por perto. Precisava dele. Ele a convidou para morar por lá, passar um ano fazendo intercâmbio. A Sônia ia agitar tudo numa escola pertinho do apartamento deles. E a mãe? O que fazer com a mãe? Deixar ela destruída no Brasil? Fazer feito ele, ligar o foda-se e tocar a própria vida? Como?

Joana se lembra ainda. Chegando em casa da natação e aquele cheiro pela casa, um cheiro esquisito. Ela correu para a área de serviço e lá estava a mãe, caída no chão frio, muito, muito branca. Ela não se mexia. Ligou para a madrinha.

“Oi querida, tudo bem?”

“Não tia. Não tá não. Mamãe tá no chão, branca. Tia, ela nem se mexe!”

“Tô indo praí. Não mexa nela.”

No tempo que a tia levou para percorrer as três quadras que separavam as casas, Joana se sentou ao lado da mãe. Estava tão frágil, tão mole jogada naquele chão branco. Ela pegou uma das toalhas da pilha de roupas e colocou sob sua cabeça. Pegou nas mãos dela, frias, e segurou. E segurou. Uma piscina, duas piscinas. A tia que não chegava. Três, quatro, cinco piscinas. Naquele momento era ela nadando o que via, era a calma de que precisava. A mãe estava lá na borda, torcendo por ela, como nas competições. Seis, sete piscinas. O tempo suspenso enquanto não vinha o socorro, o tempo infinito de entre as braçadas e a certeza de ver a mãe de novo. Respirar.

Hoje a mãe está bem. Tia Marta conseguiu fazê-la vomitar o produto de limpeza engolido. “Que distração, minha filha. Confundi o copo d’água com o de alvejante. Não fosse você chegar eu não sei o que seria de mim.” A mãe a fez prometer, jurar que não contaria ao pai. “Se ele souber ele pode te tirar de mim, entende? Você quer isso?” Mas essa não era uma pergunta.

Cinco.

Joana não queria mais pensar naquilo. Não queria mais pensar. Eram os últimos metros. O Carlinhos sempre pedia para ela acelerar nos últimos metros, era o sprint final. Para parar de pensar ela começou a contar as braçadas.

Um dois três quatro respira
Um dois três respira
Um dois três quatro respira

Duas piscinas, os 100 metros finais. As braçadas iam num ritmo cada vez mais forte, ao ponto de Joana não entrar com os braços na água: ela a socava.

Última batida, toque no cronômetro, respirar. Era o seu melhor tempo em meses. O treinador vai gostar de saber.

Já era tarde quando saiu da piscina. As luzes do clube estavam quase todas apagadas e o pessoal da limpeza terminava de arrumar as instalações para o dia seguinte. Da porta do banheiro ela viu a faxineira, uma senhora, limpando o chão.
“Vai entrar minha filha?”
“Não, acho que vou tomar banho em casa.”

Monday, July 02, 2007

Felicidade

A visão da janela nem sempre conforta. Foi o que ela aprendeu naquela tarde fria de julho. Como de costume, depois de arrumar a casa, Manu foi à janela para respirar. O cigarro ainda fazia falta nesses momentos, pouco mais de três semanas desde a última tragada, a última cinza no parapeito, a última guimba jogada no depósito de lixo coletivo do edifício. Ela se lembra de um vizinho que saía do elevador e testemunhou tudo. Ele era jovem e tinha um olhar de nojo para aquela mulher e seus dedos manchados. “Nunca mais esse olhar de nojo” repetiu para si três vezes. “Nunca mais.”

Largar o cigarro foi a última batalha vencida. Desde então era a vida que ela tentava organizar sem sucesso. Uma vida dividida em partes: o trabalho, que não satisfazia mas pagava as contas; o apartamento, com um contrato de aluguel vencido e um iminente aviso de despejo ameaçando aparecer em sua caixa de correio; a família.

A família era mais uma parte complicada, superando as outras. Tinha a mãe que queria que ela casasse e tivesse filhos logo. “Você não tem mais idade para ficar brincando de namorar, tem que encontrar alguém antes dos 35. Depois fica muito mais difícil, eu sei,eu passei por isso e olha como estou aqui, desquitada do teu pai e sozinha há tanta tempo...” Seria mais fácil se ela dissesse tudo isso, se ela falasse diretamente o que Manu adivinhava em seus olhares de comiseração a cada vez que ela respondia “não, não estou saindo com ninguém”. Mas a mãe se limitava a dizer “Eu só quero te ver feliz”.

“Eu só quero te ver feliz”, toda vez que a mãe dizia aquilo a frase enroscava na cabeça e repetia o dia inteiro, repetia sem parar, como uma acusação de incompetência, uma sentença: Você não é capaz de ser feliz. Então, vinha o inventário. Ano passado foram três casinhos passageiros, dois caras mais sérios e um erro que quase rendeu uma gravidez. E se fosse isso? E se ela ficasse grávida? A mãe com certeza desaprovaria, os olhares de recriminação aumentariam numa proporção que ela não teria como ignorar. Mas depois de nascida a criança a mãe acalmaria, tudo ficaria mais calmo. Com mais um para dividir os olhares talvez a mãe não pesasse tanto.

Instintivamente ela busca alguma coisa no bolso de trás da calça. Era aonde aguardava os cigarros. Ela riu da situação: o cigarro como um pedaço morto da anatomia, respondendo a um estímulo condicionado. Carmem comentou que isso poderia acontecer, disse isso mesmo na semana passada. “Depois de largar o cigarro eu fiquei meses andando com uns palitinhos de madeira no bolso. Toda vez que me dava vontade... não ri não, é sério! Toda vez que me vinha o impulso de puxar um cigarro eu pegava um daqueles palitinhos e colocava na boca.”

“E você acendia?”

“Claro que não, maluca! Eu queria largar o cigarro e não ser imolada em vida!”

As sessões de terapia com a Carmem eram sempre assim, divertidas. Bem, não eram exatamente sessões de terapia: ela gostava de conversar com a amiga e como estava muito sem grana para bancar uma psicóloga acabava aproveitando para fazer sua higiene mental. De seu lado, Carmem aproveitava para praticar antes do diploma sair. Era sua segunda faculdade.

“E voltar a estudar?”

“O que?”

“Você não me disse que estava pensando em voltar a estudar?”

“Não sei se isso resolveria alguma coisa... No seu caso sim, você sempre quis a psicologia e agora está podendo bancar a faculdade. Mas eu? Eu estou muito velha...”

“Ah, sei, então eu sou o que? Anciã? Você acha que é fácil atravessar aquele corredor e ver um bando de carinha adolescente, de cinturinhas mínimas e bundinhas em pé? Olha pra mim! Eu trabalho o dia todo, vou direto para o campus e ainda tenho que ver o marido no final do dia!”

“Mas você é você, Carmem. Eu não tenho essa força.”

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A janela do apartamento dá para uma pracinha agradável, onde as babás da vizinhança vão levando suas crianças. Elas chegam por volta das quatro da tarde e ficam até de noitinha. Todas com seus carrinhos, bolsas, mamadeiras de água.

Elas sentam nos bancos da margem direita, os que dão de frente para a caixa de areia e o cercadinho dos brinquedos, largam as crianças soltas e começam a conversar. Elas formam uma espécie de clube de moças, todas com seus códigos de conduta, sua hierarquia, seus procedimentos padrão. Se chega uma moça nova ela começa sentando nos bancos mais afastados, os da esquerda. Depois, é convidada a se juntar a um dos pequenos grupos periféricos, até ir aos poucos galgando suas posições e poder freqüentar o grupo do meio, a elite das babás.

Vez por outra uma mãe resolve levar a criança, mas o grupo está preparado para isso. Nesses dias as moças abrem espaço para a mãe, deixam-na pensar que também é parte do grupo, ciceroniana pela babá de seu filho ou filha. Mas as conversas paralelas são adiadas, os desabafos, os códigos, tudo protegido da visão estrangeira.
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“Tem horas que eu penso ser isso.”

“Isso o que, Manu? Ser babá?”

“Não, o que eu quero: fazer parte de um grupo, ter uma rotina, conversar com as amigas. Pertencer a algum lugar.”

Talvez seja isso, a felicidade.

Friday, June 29, 2007

Uma vida desgraçada essa

Uma vida desgraçada essa. Quem poderia imaginar, eu aqui, chegando aos 40 anos e sem rumo. Meus pais me criaram, como era do costume de então, para ser engenheiro, médico, advogado ou funcionário público. Opções demais, percebe? Opções demais.

Eu devia era ter me casado com a... a filha de Dona Constância, a que vivia encima dos muros, aquela... Joana. Esse era o nome. Eu devia ter me casado com a Joana. Ela é como eu, criada solta no quintal, depois no colégio dos padres. Todo dia passava a mãe dela com seu fusquinha ferrado para buscar a gente. Eu, o Tonho e a Maricota íamos atrás pintando a sapequeira, enquanto Dona Constância, sempre atrasada, furava cada sinal amarelo que via na frente. Era a nossa montanha russa de meninada interiorana.

Acho que a Joana acabou se casando pelo Rio mesmo, foi pra lá fazer faculdade e ficou, como muitos que daqui saíram. Ela tinha umas pernas bonitas a danada, mesmo cheias de ralado de tombo, de roxo. Ela era a minha companhia nas artes de quintal, que incluíam: roubar manga do Seu Floriano, caçar galinha d´angola, assaltar a geladeira da mãe dela e espiar a Votiva trocar de roupa. A Votiva era a empregada lá de casa, uma menina pouco mais velha que a gente que a mãe dizia que “pegou para ajudar”. A pobre trabalhava feito um burro de carga e ainda tinha que espiar pelos ombros as artes que eu e Joana aprontávamos.

Tem quem ache a infância a maior das maravilhas, que naquele tempo tudo era melhor, tudo era mais fácil, que o Brasil era mais tranqüilo. Merda nenhuma. Era tudo isso aí, a gente é que via menos coisa noticiada. A ação era mais recolhida. Bom, recolhida mas nem tanto. Quando a gente já estava no ginasial, nem usam isso agora de chamar de ginasial... mas então, foi quando a gente começou a reparar nas notícias de gente sumida, uma família inteira deixou a casa da noite para o dia só porque o pai deu a dizer que o sujeito era comunista. E tinha também ladrão, e morte, e marido pulando cerca.

Será que a Joana ainda está casada? Hoje em dia todo mundo se separa, o divórcio é um negócio tão banal que qualquer dia, pra facilitar as coisas, botam um quadradinho daqueles de teste de vestibular no final da certidão de casamento para o sujeito marcar e pronto, se separa. Ou sei lá, faz feito carteira de motorista, renovação obrigatória de 5 em 5 anos, com direito a todos aqueles testes físico... Será que o casamento da Joana já expirou?

Das opções que os meus pais me deram acabei funcionário público. O problema é que a idéia de funcionário público que venderam para eles, e que alguns idiotas ainda estampam por aí, é a do cara com aquele empreguinho fixo, salário polpudo, vida em velocidade de cruzeiro. Até tem desse tipo, mas eu não dei sorte e dei de cair numa repartição de merda, que vive entupida de papel e cheia de gente buzinando nos meus ouvidos. Pra te ser sincero, ando desconfiado que tem gente que vai lá só para ver qual é. Sabe? Qual é a dessa história de registros e patentes. Tudo um bando de desocupados, uns emprenhadores do ouvido alheio.

Eu acho que vou procurar a Dona Constância para saber da Joana. Quem sabe se ela não está solteira, sozinha... Será que ela ainda tem aquelas pernas?

A gente chegou a namorar no colegial. Mas aí eu fiz a merda de pegar a garota que veio de intercâmbio e que estava hospedada na casa da melhor amiga dela. Estúpido, não? Pois é, foi assim mesmo, estúpido. Claro que a loirinha deu com a língua nos dentes para a amiga, que contou para a Joana. No dia seguinte no colégio me veio ela no meio no pátio e pá, me lascou um tapa. De mão aberta. No meio da cara. Não falou nada, me olhou no fundo do olho, deu meia volta e foi isso. Nunca senti tamanha vergonha em toda a minha vida.

Depois ela namorou meio colégio, só para acabar comigo de vez. Sumiu do portão. Me via e atravessava a rua. Isso por mais uns 3 anos, até que foi estudar no Rio. Daí não vi mais.

Minto, vi sim. Uma vez ela veio visitar a mãe. Estava mudada, mais bonita, cabelo cortado curtinho. Vinha ela e a irmã. Ela me viu, eu já entrando em casa de cabeça baixa quando ela resolveu atravessar a rua para falar comigo. Me disse oi, eu respondi.

“Veio visitar sua mãe?” claro, estúpido, para que mais ela viria?

“Vim sim.”

Silêncio.

“Depois eu passo aqui para a gente conversar” disse, enquanto entrava no portão vizinho.

Nunca mais a vi.

E isso me deixa danado. O que diabos ela queria falar comigo? O que ela queria me dizer?

Isso tudo foi há 7 anos. Caramba, 7 anos.

Acho que vou ligar para Dona Constância.

Friday, September 09, 2005

Desterro

O chão que eu piso será salgado, meu nome condenado ao degredo, minha casa à ruína, meus filhos à vergonha, meus pais ao exílio. Nunca mais meu nome deverá ser pronunciado e eu serei o fantasma das noites escuras, a ameaça para as crianças que desobedecem os pais. Meu nome será o segredo de gerações inteiras, até que minha existência torne-se tão fantástica que a crença a engula e eu me torne lenda.

O chão que eu piso e que já foi o teu está agora distante, longe dos meus pés descalços, meus pés suspensos sobre o pequeno banco, um salto e meus pés no ar, o sufoco do laço espremendo de mim a vida e esse vazio sob os pés, o barulho seco do pescoço cedendo, minha última imagem do mundo, este chão.

O chão em que piso e que já foi nosso, correndo os dois, felizes por um dia de sol ou por coisa alguma, sorrindo desarmados e livres, correndo alegres, sem motivo. O sol batia em seus cabelos e o vento trazia o cheiro para mim, o sol despertava em mim a imagem das tuas passadas largas, das tuas ancas redondas querendo-me, eu a segui-las, te seguindo tonto, o teu rosto sobre mim. O sol queria que fossemos os cúmplices dessa luz intensa, cúmplices sem mácula de um dia perfeito, sem mácula, sorrindo os dois para a luz e sendo felizes, sem motivo. Devíamos ter percebido.

O chão que já nos serviu de leito, minhas mãos amparando teus cabelos, um gosto de terra entre teus dedos, meu corpo aninhado no teu como se eu morresse e você fosse a cova macia. Meus desejos contados em cada palmo do seu corpo, deitado entre tuas pernas, sentindo tua pele quente, minhas mãos palmilhando tuas curvas, desejando ser náufrago e te encontrar ilha, mapear tuas enseadas e teus montes, encontrar o ponto melhor para construir morada, seu habitante e seu amigo, recriar com as mãos teu beijo e vibrar junto contigo quando um vulcão explodisse. Devíamos ter percebido.

O chão que depois de você começou a ferir-me as solas, a arder em minhas narinas, puro pó, puro desterro, deixou de ser o chão dos meus passos, teus pés sobre os meus, os dois brincando de dançar. Não quero mais lembrar e me lembro. Não quero lembrar mas não posso mais impedir, não tenho mais o controle, as imagens me desobedecem, obsedam, sedando o que resta de consciência, meu corpo inerte entre os espasmos. Onde começou tudo aquilo que depois me levou a este momento, já o mijo quente escorrendo pelas pernas, já o corpo alheio ao pensamento, quase separado, pensamento tornado independente, corpo solto que ninguém mais vai visitar? Eu devia saber onde, devia saber, onde, onde começou tudo.

Não quero saber onde começou tudo. Quero partir com essa imagem doce, você molhada de orvalho e sorrindo, eu molhado de suor e sorrindo, os dois deitados lado a lado sob um céu azul infinito, na tarde de uma felicidade infinita, ambos infinitamente livres e completos, satisfeitos com o pouco da presença inteira do outro, com o muito que tínhamos pela frente então, com o muito que ainda poderíamos ser. Por que não permanecemos assim, selados eternamente naquela tarde, nós em nosso próprio mundo, fundadores de um continente a parte, cobertos da glória de um futuro perfeito? E nossos futuros filhos, nossos futuros netos que não chegamos a ver, todos ali se admirando da felicidade ímpar de seus ancestrais? Por que não fomos infinitamente tão felizes?

Mais um pouco e o fio de vida que ainda me prende se soltará, mais um pouco e eu não serei mais eu. Mais um pouco e meus olhos estarão vazios e a putrefação começará, outro relógio a medir as carnes, outro cronômetro a contar a diluição das carnes até chegar aos ossos e dos ossos ao pó. Minuto, segundo, a cada ponto um contraponto, a cada ponto um contra, a cada....

Intervalos de tempo. Intervalos. O tempo contado, o tempo, o tempo, percebe? Tem uma brecha em cada ponta, uma antes outra depois, o tem - po, uma no meio. Foi por ali! Foi assim! Não percebe? Foi assim, a água minando a rocha, assim nasceu tudo o que hoje me traz aqui, à vizinhança da morte, foi ali! Foi no meio dos nossos dias felizes que surgiu a mágoa, e dessa mágoa o choro, a água minando, e desse choro a minha morte. Foi no intervalo dos momentos mais completos, mais plenos, dos dias de cumplicidade com o sol, dos momentos que piscamos, que cobrimos os olhos, foi nesses momentos brancos que veio essa dor. Foi quando nos acreditamos eternos, quando juramos nunca mais sermos mais felizes que naquele instante, um pouco antes ou um pouco depois desse instante, foi no suspiro, ali surgiu a dúvida, ali plantamos a suspeita.

Nada em nós gritou, nada em nós se partiu, os sinais de alerta não vieram tão estridentes quanto deveriam. Ao contrário, naqueles breves intervalos de sombra o que nos veio foi um sussurro ínfimo, uma respiração cortada, um suspiro. E nós, tão impossivelmente felizes, não nos demos conta que a nossa ruína, o motivo do meu desterro, a razão da minha queda, estava ali. Nos prometemos coisas terríveis achando sermos felizes, nos prometemos demais e a eternidade dessas lembranças nos destruiu. Teu corpo desejou liberdade e eu te permiti ir. Agora parto também. Adeus.